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terça-feira, 23 de junho de 2015

Corrupção e Obras Públicas – Empreguismo também é uma forma de corrupção; ou o caso do filho do motorista do senador

Da série "Corrupção e Obras Públicas". Você pode entender como fantasia ou ficção, eu só conto o que eu vi, ouvi e vivi. Será?

Fonte: openclipart.org
Estava lembrando de um editorial do jornal Zero Hora, dei uma pesquisada e achei, ele falava sobre a “praga do fisiologismo”. Num determinado trecho (veja que o editorial é de outubro/2011) é dito:

“[...]a pior parte desta mistura de empreguismo e fisiologismo parece ser mesmo a relação promíscua entre os ocupantes de cargos importantes, seus partidos e prestadores de serviços para o governo, sejam eles empresas ou organizações não governamentais. A tentação de usar o poder para beneficiar amigos e apadrinhados é sempre muito grande[...]”

Na época que eu li, imediatamente eu lembrei de outra história que aconteceu comigo. Estava uma obra de grande porte, com mais de 2.500 operários e mais de 20 engenheiros. O contratante era o governo federal e eu era um coordenador de uma determinada área técnica. Como éramos uma empresa privada era usual pedir indicação aos conhecidos de candidatos para as vagas que tínhamos. Assim como também anunciávamos as vagas nos classificados dos jornais. Quando há mais de um candidato para uma determinada vaga, o candidato com melhor “indicação”, muitas vezes, fica com a vaga. Mas isso acontece em qualquer empresa privada, o indicado já vem com uma espécie de “pedigree”. O que não deixa de ser conveniente pelo fato de facilitar a seleção.

Só que a nossa empresa privada era uma “empreiteira de obras públicas”. Eu tinha uma colega que dizia que uma empreiteira é uma “empresa privada que é quase uma empresa pública” tal é o envolvimento e a interdependência que elas têm com o poder público. E isso não é de hoje, como mostra a reportagem do UOL, citando o livro “A Ditadura dos Empreiteiros”, tem pelo menos 60 anos. Sendo assim as indicações para as vagas podem ter grande influência dos agentes públicos (seja de funcionários público ou de políticos de carreira). Muitas vezes as vagas são criadas especialmente para abrigar algum apadrinhado. Já testemunhei vários casos desses.

O mais bizarro deles foi quando estava na grande obra da qual eu falei antes. Um certo dia, ainda no início do empreendimento, veio um rapaz de vinte e poucos anos com a recomendação do presidente da empresa para ser contratado como técnico de edificações. Uma orientação dessas não seria questionada. Assim o setor de RH fez a contratação do rapaz, deu um capacete e um par de botinas para ele e mandou ele se apresentar ao encarregado geral da fábrica de pré-moldados. Depois de dois dias perambulando sem entender muito o que acontecia na fábrica o encarregado geral resolveu fazer a pergunta: você já trabalhou como técnico em edificações? Ele, meio que espantado, disse: não eu era motorista.

Logo a notícia se espalhou pela obra, junto com a explicação. O rapaz era filho do motorista de um senador. E vejam só, o senador nem era do partido do presidente. Aliás, o tal senador sempre foi considerado de “moral ilibada”. Ou seja a indicação não tinha relação direta com a verba da obra. Era uma troca de favores como tantos e tantos outros casos que vemos por aí. Aliás, essa indicação cruzada de pessoas para cargos públicos ou privados é que dificulta mais ainda o esclarecimento dos casos de clientelismo e corrupção.

Pois bem, o filhodomotoristadosenador, já que não tinha qualificações como técnico em edificações (como também não tinha nenhuma outra formação) foi deslocado para a área de compras. Nessa função também mostrou que não tinha nenhuma habilidade para as tarefas de comprador. Mesmo assim lá permaneceu por quase dois anos, sob o protesto do seu chefe. Dois anos depois, numa dessas reviravoltas políticas, a obra (na verdade o empreendimento como um todo) teve que ser reestruturada. Assim surgiu a justificativa para comprador chefe demitir o filhodomotoristadosenador junto com outros tantos. E assim foi feito, porém, dois dias depois, ressurgido das cinzas da demissão ressurge o filhodomotoristadosenador com uma recomendação da diretoria para cancelar a demissão. Para dizer mais, o comprador chefe é que quase foi demitido, só não foi em consideração aos seus mais de vinte anos no grupo empresarial.

E foi assim que o filhodomotoristadosenador caiu na minha coordenadoria. Como era uma área exclusivamente técnica eu praticamente não tinha tarefas que pudesse passar para ele. Assim passei atividades de um estagiário de nível médio, embora o salário fosse de um técnico veterano. Mesmo nessas atividades ele se mostrava pouco competente. Era um grande incômodo. Ele passava a maior parte do tempo em ligações particulares usando o telefone da empresa, numa época antes da disseminação dos celulares. Isso era tão notório que eu me lembro da brincadeira que um dos técnicos fez com ele. O técnico comprou um telefone de brinquedo, desses que bebês usam, colou na mesa dele com uma etiqueta dizendo: Telefone Exclusivo para Ligações Particulares (TELP). Mas não pensem que ele ficou constrangido, ele riu muito. Era o típico malandro simpático, bom de papo e pouco trabalhador.
No final das contas, passado mais um ano, numa nova reestruturação, eu é que fui demitido junto com outros colegas. Ele permaneceu, é claro.

Assim, quando você falar de empreguismo, repense alguns conceitos. As indicações nem sempre são para os grandes cargos diretivos de órgãos públicos com régios salários e glamour. O empreguismo mina boa parte dos prestadores de serviço e fornecedores que trabalham para o setor público. Aliás ele é uma parte quase invisível da máquina da corrupção, porque não é considerado corrupção.

Fontes:



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