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domingo, 14 de julho de 2013

A indústria do petróleo acabou com o carro elétrico no início do século XX?

A relação difícil entre a indústria do petróleo e o carro elétrico, histórico e perspectivas.

- A origem da questão de quem “acabou com o carro elétrico”

Quem Matou o Carro Elétrico?
Uma das acusações mais frequentes que tenho visto contra o setor petrolífero é de que ele “acabou com o carro elétrico” nos primórdios da indústria automobilística. Pesquisando um pouco mais a fundo, acho que a maior responsável por essa “lenda” foi uma interpretação equivocada do filme “Quem matou o carro elétrico?”. Assisti o documentário completo e achei muito bom. Todos os interessados em carros, combustíveis e ecologia deveriam assistir.

- Os primórdios do carro elétrico

Na década de 1880 tanto os automóveis com motor à explosão, quanto aos movidos a baterias começaram a ser produzidos. Vindo assim a se juntarem aos carros a vapor já existentes no mercado. Conforme Baran e Legey:
“Em 1903, havia cerca de quatro mil automóveis registrados na cidade de Nova York, sendo 53% a vapor, 27% a gasolina e 20% elétricos. Em 1912, quando a frota de carros elétricos naquela cidade atingiu o ápice de 30 mil unidades, a quantidade de automóveis a gasolina já era trinta vezes maior. A partir de então, a trajetória dos carros elétricos seguiu em forte queda.”

- Por que o carro elétrico parou de ser produzido no início do século XX?

Nesse ponto é que surgem as histórias sobre “teorias da conspiração”, realizadas pela indústria petrolífera e a indústria automobilística. A realidade é que o carro elétrico antigo terminou por razões mercadológicas simples:
  • O carro com motor a explosão interna tinha uma autonomia muito maior do que o a bateria. Além disso, o tempo para recarga era enorme.
  • A tecnologia das baterias era antiquada, fazendo o carro ficar muito pesado. Em contrapartida, evoluções na tecnologia dos carros a gasolina, tais como o motor de arranque (usando uma bateria pequena) foram dando vantagem para o segundo.
  • A produção em série dos automóveis a gasolina fizeram com que eles fossem ficando muito mais baratos do que os elétricos (menos da metade do preço).
  • O que enterrou definitivamente o carro elétrico dessa época foi a descoberta de grandes reservas de petróleo, que fez o preço da gasolina despencar.
  • Lembrando que na época não havia quase nenhuma preocupação com a poluição.

Em alguns períodos de escassez, como durante a Segunda Guerra Mundial, houve uma sobrevida para os carros elétricos.

- O que realmente houve com o EV1, o “personagem” do filme?

Neste ponto entramos no terreno da especulação. O filme fala que os culpados foram: a GM (fabricante do veículo), a indústria do petróleo por tentar boicotar o projeto, os legisladores e governantes (por inércia ou conivência), o projeto do carro com células de hidrogênio e os consumidores (por não terem confiado no veículo). O filme isenta as baterias pela culpa já que a própria GM era detentora de uma tecnologia que poderia melhorar bastante o desempenho das mesmas.
Vou dar a minha opinião sobre o assunto:
  • A indústria do petróleo é claro que tem medo de concorrentes para os seus. Porém, é bom lembrar que, embora a gasolina seja a menina dos olhos da indústria, é só uma parte da indústria. Embora as petrolíferas sejam poderosas, e façam pressão efetiva sobre os legisladores e governantes, só podem ser acusadas de ajudarem a denegrir a imagem do veículo.
  • Os poderes públicos aprovaram e puseram em prática uma legislação que previa um cronograma rígido para redução das emissões de carbono dos veículos automotores. O carro elétrico da GM, foi só uma das alternativas possíveis. O problema é que a legislação era tão avançada para a época e as metas tão ousadas, que a indústria automobilística começou a entrar em pânico. Ela não conseguiria cumprir os prazos a um custo razoável. A pressão foi enorme e a legislação acabou mudando.
  • No rastro da falta de respostas positivas do carro elétrico, as autoridades da Califórnia começaram a estimular a ideia dos carros com células de combustível de hidrogênio líquido. Ao longo do tempo isso se revelou uma cortina de fumaça (intencional ou não), já que esse tipo de tecnologia só se tornará economicamente viável após 2050 (embora exista a previsão de lançamento de veículos com células de hidrogênio bem antes). Isso tudo deu mais uma razão para uma saída honrosa para o carro elétrico da GM.
  • Isentar as baterias do EV1 de alguma culpa é, no mínimo, ingenuidade. O carro era uma grande bateria, as baterias se espalhavam por todos os cantos do carro. Mesmo que a GM desenvolvesse melhor as baterias de longa duração e autonomia que já tinham a patente, isso só melhoria a autonomia delas. A segunda opção seria diminuir o tamanho e manter a baixa autonomia. O problema permaneceria e a GM teria que gastar bastante para melhorar as suas baterias.
  • Os consumidores são sempre culpados. Se o carro tivesse caído no gosto do publico é claro que continuaria a ser produzido. O filme mostra que, embora a GM dissesse que não havia demanda para o veículo, muitas pessoas ainda queriam comprá-lo. O que eu vejo é que os “muitos” que queriam o carro gostavam mais do fato dele ser um brinquedinho de luxo. O carro era relativamente grande por fora, mas só dava para duas pessoas, ocupando o mesmo espaço do que um carro para quatro. Tinha um porta malas bem pequeno para o seu tamanho. É verdade que ele era bastante silencioso e atingia altas velocidades com uma aceleração impressionante. Porém a autonomia dele era bem pequena, cerca de 150km, com um tempo de recarga de no mínimo meia hora (para uma recarga completa entre 8 e 12h). No filme é argumentado que a grande maioria dos trajetos é menor do que essa distância. Mas vamos pensar, por que a maioria dos consumidores iria querer um carro que a maior vantagem prática era o desempenho, se ele não servia para longas viagens, se não dava para carregar a família do subúrbio até a cidade, nem era adequado para transporte de cargas? Você pode dizer que as razões eram ecológicas, mas aí a resposta não deveria ser um transporte quase individual (em detrimento do transporte coletivo), que ocupa o mesmo espaço nas estradas que um SUV.
  • Resta analisar a GM. Por que ela acabou com o projeto? Por que a ânsia em destruir todos os carros produzidos? Bem, já disse que os fabricantes de carro estavam apavorados com as metas impostas, a GM já tinha gasto muito dinheiro com o projeto do EV1 e não via possibilidades de retorno do investimento. O carro não tinha futuro comercial. A GM se engajou na cruzada pela mudança da legislação. E sabia que para isso deveria parar de incentivar o EV1. E sobre a destruição dos carros? Não foi a primeira nem a última vez que a indústria tenta recolher um fracasso de vendas. Como entre 1996 e 1999 foram fabricados cerca de 1.000 unidades, e todas foram dadas em leasing (um aluguel com opção de compra), os veículos foram todos recolhidos e destruídos (alguns estão em museus). Pensei muito nas razões da destruição. O que eu posso inferir é que a GM, além de querer acabar com o projeto e os exemplares para garantir que ele não seria retomado por algum fabricante pequeno, interessado no nicho de mercado. Além disso, imagino que a GM ainda acreditava que havia alguma tecnologia ainda presente no veículo, visto que os exemplares nos museus foram totalmente desativados. Mesmo assim, estamos falando de uma tecnologia que já tem 17 anos.
  • Não existem milagres tecnológicos ocultos que sejam comercialmente viáveis. Ninguém deixa de ganhar dinheiro com um projeto viável. Mesmo que você compre uma nova tecnologia que ameace o seu negócio, como se compra um concorrente para garantir o seu mercado, essa vantagem não se mantém por muito tempo. Ou a tecnologia acaba sendo suplantada ou acaba vindo para o mercado.

Para “coroar” essa análise, sugiro que leiam os comentários da revista TIME que classifica o EV1 como um dos 50 piores carros da história.

- Qual o futuro do carro elétrico?

Bom, a resposta já tinha surgido enquanto o EV1 ainda era produzido. Em 1997 a Toyota lança o Prius, o primeiro carro híbrido a fazer sucesso de vendas. Tinha um consumo médio de 21,7 km/litro de gasolina e um bom espaço interno. Até hoje já foram vendidos cerca de 3 milhões de unidades do carro.
Vamos ver quais os tipos de tecnologias envolvidas nos novos veículos elétricos:
  • Automóvel híbrido (HEV) – possui um motor elétrico e um motor a explosão e cuja bateria utilizada para alimentar o motor elétrico é carregada diretamente pela força do motor a combustão.
  • Automóvel híbrido plug-in (PHEV) – automóvel hibrido cuja bateria utilizada para alimentar o motor elétrico pode, também, ser carregada diretamente na por meio de uma tomada na rede ou num ponto de recarga.
  • Automóvel micro híbrido – é um automóvel com motor a combustão com eletrônica embarcada de modo a melhorar muito o desempenho. Tem a partida a parada e “stand-by” elétricos.
  • Veículo elétrico (EV) – que utiliza propulsão por meio de motores elétricos.

Existem várias previsões de mercado para o mercado futuro de automóveis (fora os veículos de carga e transporte coletivos), coloco abaixo duas delas. Não coloquei nenhum gráfico sobre o Brasil, porque não encontrei dados oficiais, mas pelo que sei, não são muito diferentes dos abaixo mostrados.
Primeiro vejam o gráfico do estudo de Taylor et alli. Embora esse trabalho já tenha alguns anos ele demonstra facilmente o que deve ocorrer com o mercado de carros com motor de combustão interna (CE), inclusive os com motores flex, diante dos híbridos (HEV) e dos plug-in híbridos (PHEV)
 Projeção fatias de mercado automóvel híbido
Outra visão possível, e bem mais recente é a dada pelo relatório anual da EIA (Agência de Informações sobre Energia dos EUA). No gráfico estão retratadas as projeções de vendas de veículos com algum tipo de combustível alternativo, vejam que os tipo flex também estão incluídos.


- O que a indústria do petróleo pode esperar com futuro do carro elétrico?

Diante do que já foi mostrado, as perspectivas para o consumo mundial da gasolina não são nada espetaculares. As novas tecnologias entrantes podem diminuir o consumo, por quilômetro rodado, de gasolina.
A concorrência do etanol já é uma verdade, embora não acredite que o volume produzido aumente substancialmente, porque os mesmos argumentos ecológicos contra o consumo desenfreado de gasolina também respingam na produção de etanol.
Alguma coisa pode ser feito no sentido de criar motores híbridos a gás natural, muito mais abundante do que o petróleo e bem menos poluente, embora de exploração um pouco mais complexa para o uso veicular.
Ouvi falar num estudo do IHS Cambridge Energy Research Associates de que se toda frota americana fosse plug-in atualmente, o consumo de eletricidade cresceria um sexto e a redução da demanda de gasolina seria da ordem de 70%. Ainda assim, o consumo mundial de gasolina não declinaria tão cedo, afinal a população não para de crescer nos mercados “emergentes” que são muito carentes de transportes coletivos. Assim está garantido um mercado promissor para veículos híbridos que vão consumir gasolina, com um consumo unitário bem abaixo dos valores atuais.

FONTES:

- Annual Energy Outlook 2013: http://www.eia.gov/forecasts/aeo/
- Evaluation of the Impact of Plug-in Electric Vehicle Loading on Distribution System Operations (de J. Taylor, A. Maitra, M. Alexander, D. Brooks, M. Duvall): http://www.abve.org.br/destaques/2009/Evaluation_of_the_Impact_of_Plug-in_Electric_Vehicle_Loading_on_Distribution_System_Operations.pdf
- Associação Brasileira do Veículo Elétrico: http://www.abve.org.br
- Veículos elétricos: história e perspectivas no Brasil (por Renato Baran e Luiz Fernando Loureiro Legey): http://www.abve.org.br/downloads/Veiculos_eletricos_perspectivas_Brasil_BNDES.pdf
- Quem matou o carro elétrico?
- EV1 da GM (filme explicando as características do carro): http://www.youtube.com/watch?v=fLknNrrL6QU
- EV1 da GM na lista da revista TIME como um dos 50 piores carros de todos os tempos: http://www.time.com/time/specials/2007/article/0,28804,1658545_1658544_1658535,00.html
- RESENHA ENERGÉTICA BRASILEIRA - Exercício de 2012 http://www.abce.org.br/downloads/ResenhaEnergetica2012.pdf
- IHS Cambridge Energy Research Associates: http://www.ihs.com/pt/br/products/cera/index.aspx#

Um comentário :

  1. Seria talvez chamado de sonhador e irreal, se eu tivesse postado isso logo após seu artigo, mas agora passados esses anos todos, vamos lá :
    Sempre houve interessados em manter a indústria do petróleo no domínio, como J.P.Morgan e seus descendentes; Sobre as baterias, isso não é nenhum empecilho ao passo que elas iriam fatalmente evoluir, bastando algum tempo, como foi mostrado com as de NiMh, feitas logo depois do lançamento do carro(hoje em dia as de sódio são as melhores e mais baratas); Finalizando,Troy Reed criou um carro com gerador magnético que carregava poucas baterias todo o tempo enquanto o carro era utilizado ou ficava parado,sendo o veículo ideal por não precisar recarregar em lugar algum,sendo o "sonho" dos ambientalistas e o pesadelo das indústrias de petróleo; finalmente, os EUA tem de ter algum motivo para justificar sua intromissão no oriente e Venezuela, pois de outro modo não teria apoio popular.

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