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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Ética na Ciência

Quais são os limites da ética no estudo científico? Uma monografia, com exemplos históricos de conflitos éticos na ciência.

Obs.: Este post é uma reedição de um trabalho que escrevi, em agosto/2002, quando estava fazendo mestrado. Agora coloco aqui para torná-lo público. O estilo é um pouco mais acadêmico do que o de costume, porém, simplifiquei e atualizei os links das referências bibliográficas (sem deixar de mencioná-las) e também alterei a numeração dos itens.

1. Introdução

Vivemos numa época em que conceitos caem por terra diante da falta de comprovação científica. Assim acostumamo-nos a acreditar que alguma coisa só tem existência e projetos só têm viabilidade se comprovados “cientificamente”. Consequentemente, a ciência torna-se a “religião da modernidade”. Mas sabe-se que toda religião tem seus padrões morais, e esses são objetos do estudo da Ética. Portanto quando se faz ciência não se pode fugir da ética.
Este trabalho tem como finalidade mostrar alguns pontos, que são mais polêmicos, relativos à ética científica, através de alguns exemplos históricos e outros atuais, procurando questionar os limites éticos da ciência.


2. A Ciência, a Metodologia e a Pesquisa Científica

A Ciência é o “conhecimento; saber que se adquire pela leitura e pela meditação; conjunto de conhecimentos coordenados relativamente a determinado objeto; estudo sistematizado.”1. Freire-Maia2 amplia: “Ciência é um conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis, modelos, etc., visando ao conhecimento de uma parcela da realidade, em contínua ampliação e renovação, que resulta da aplicação deliberada de uma metodologia especial (metodologia científica).”
Pelas definições acima vemos que a ciência é o conhecimento coordenado, sistematizado e evolutivo sobre um determinado assunto. O fato de ser sistematizado implica no uso de um método que transforme a ideia inicial em resultados. E o método consagrado é o “Método Científico” que para Cervo e Bervian3 é composto de técnicas (ou processos) que são: a observação, a hipótese, a experimentação, a indução e a dedução.
Por outro lado o conhecimento científico é evolutivo. O que implica na ampla divulgação das hipóteses, das técnicas de pesquisa, do objeto das pesquisas, do local, da época, etc. E não só a divulgação dos resultados, como é comum, pois as conclusões e ideias apresentadas em uma pesquisa são o ponto de partida para novas pesquisas.

3. A pesquisa científica e as limitações do Método Científico

É possível para a ciência avançar sem que se siga rigorosamente o método científico, afinal, como argumentam Cervo e Bervian3, o método não substitui o gênio do cientista, sua criatividade e talento, mas alguém não tão brilhante pode chegar a bons resultados orientado pelo método.
Hoje quase toda a pesquisa científica é baseada no método, pois afinal “A época do empirismo passou. Hoje em dia não é mais possível improvisar [...] Ninguém pode se dar ao luxo de fazer tentativas ao acaso para ver se colhe algum êxito inesperado”3.

4. A ética e o comportamento ético

Ética é: “Parte da filosofia que estuda os deveres do homem para com Deus e a sociedade; deontologia; ciência da moral”4. Estuda também “[...] os outros princípios ideais da conduta humana.”5. Há também outro significado citado nesse dicionário: “Conjunto de princípios morais que devem ser respeitados no exercício da profissão”5. Esse último sentido para a palavra é o que melhor traduz a ética científica.
Sabendo disso, quando se fala em comportamento ético na ciência vale lembrar que Santos6 diz que todas as pessoas procuram fazer o bem, fazer algo que nos faça bem ou nos traga o bem. Mas que no caso da ética o conceito de bem é definido pragmaticamente, pois a busca pelo bem na ciência pode não ter limites: “Infinita, ou quase, pode ser a ambição de alguém em se realizar cientificamente. A ânsia pela fama e pelo poder pode também se tornar insoptável.”6. Ele completa dizendo que todos os homens desejam, além dos bens materiais, serem reconhecidos por suas habilidades6.
Por essas razões é compreensível que em muitas ocasiões ocorram ruptura dos códigos éticos que limitam a ciência.

5. A evolução da ciência comparada à ética

Embora haja o argumento, citado anteriormente, dando as razões para o comportamento antiético também se sabe que a ética varia com o tempo, o local e as motivações.
Sobre esse assunto Ribeiro7 diz que:
“[...] uma das crenças básicas de nossa sociedade é que a ciência progrida sem parar [...] Só que, quando pensamos em ética, acreditamos no contrário: que ela não mude com o tempo. Cremos no progresso da ciência, mas na permanência da ética. Ora, nada justifica que a ética não mude. Se não ousarmos dizer que a ciência chegou a seu estágio final, não devemos dizer isso da ética.”

6. Casos de conflitos éticos na ciência (exemplos históricos)

A história da ciência é farta em exemplos sobre conflitos e limites éticos. Para José Goldemberg8 existem dois enfoques para os conflitos éticos na ciência: um é interno, com a procura nas fronteiras do conhecimento com isenção e honestidade, a outra é para com a sociedade onde os cientistas desempenham apenas o papel coadjuvante, pois o uso do conhecimento agregado depende de decisões políticas, sociais ou religiosas. Essas decisões definem o limite da ética8.
Analisaremos a seguir casos que exemplifiquem os conflitos existentes nos vários aspectos envolvidos na pesquisa científica. 

6.1. A ética nos objetivos da pesquisa

Não é fácil separar aqueles que têm atitudes éticas no objetivo das pesquisas dos que não têm. O mesmo cientista que foi capaz de um grande feito para a Humanidade pode ser o responsável por descobertas destrutivas.
Esse foi o caso de Fritz Haber, um judeu nascido na Alemanha, que em 1918 ganhou o Prêmio Nobel de Química pela descoberta da síntese da amônia, que deu início a indústria dos fertilizantes químicos. Mesmo essa honraria não lhe bastou para obter o perdão do mundo científico. Pois em 1915 ele sugeriu que fosse usado o gás de cloro para ataque contra as trincheiras francesas da I Guerra Mundial. Na primeira batalha em que foi usada uma arma química (o cloro), a batalha de Ypres, 5 mil soldados morreram intoxicados e mais de 10 mil ficaram fora de combate9.
Outras vezes uma descoberta que aparentemente só traria benefícios tem o seu uso alterado.
Os desfolhantes foram desenvolvidos após a II Guerra Mundial para servirem como herbicidas. Porém na Guerra do Vietnã foi usada uma mistura de dois poderosos desfolhantes, que ficou conhecida como agente laranja. O uso do agente laranja tinha por objetivo a destruição das florestas e das plantações onde se escondiam os soldados vietcongs. Hoje se sabe que o agente laranja é altamente cancerígeno e a sua produção foi proibida nos EUA9.
Motoyama10 diz que, por outro lado, as guerras podem permitir avanços na pesquisa científica (embora não sendo o único caminho), pela fartura de dinheiro disponível. Ele cita o caso da energia nuclear: não se via aplicações práticas 20 anos antes da bomba de Hiroshima e, após a guerra, houve um grande avanço no uso da energia nuclear para fins pacíficos. Atualmente é gerada muita energia elétrica a partir da nuclear nos dias de hoje.

6.2. A ética sobre o objeto da pesquisa

O mais delicado dos casos envolvendo conflitos éticos tem recaído sobre o objeto das pesquisas. Sobre o universo específico daquela experimentação ou investigação. Sem dúvida, o tipo de pesquisa que causa maior polêmica é aquele que faz experiências biológicas com seres humanos.
Filme: Cobaias (1997)
O que hoje é conhecido domo The Tuskegee syphilis study*, foi um estudo sobre o efeito da sífilis no corpo humano, desenvolvido no interior do estado do Alabama, com apoio do Serviço Público de Saúde Norte Americano (USPHS). Iniciado nos anos 30, com 399 homens negros infectados com sífilis, encerrou-se só em 1972. Ao final da II Guerra Mundial (1947) já se conhecia a cura para a sífilis (a penicilina), mas ela nunca foi oferecida aos pacientes. Quando o estudo veio à tona em 1972, já haviam morrido de sífilis 28 dos pacientes, outros 100 morreram de complicações causadas pela doença. Pelo menos 40 esposas foram contaminadas e 19 filhos nasceram com o vírus. O governo americano pediu desculpas públicas, as famílias foram indenizadas materialmente e esse tipo de pesquisa não mais considerado ético dentro dos EUA11.
Goldim12 diz que há hoje uma polêmica entorno da ética ou não da pesquisa com embriões humanos, já que para muitas religiões o ser humano surge na concepção. Para tanto cita Claude Bernard que, em 1852, disse:
“O princípio da moralidade médica e cirúrgica é nunca realizar um experimento no ser humano que possa causar-lhe dano, de qualquer magnitude, ainda que o resultado seja altamente vantajoso para a sociedade.”12
Mas também Goldim12 cita posições mais atuais que justificam o uso de embriões como a de Tereza R. Vieira: 
“A consciência humana, as leis, a humanidade, a consciência dos médicos condenam a experimentação no homem, mas [...] ela é sempre feita, se faz e se fará por ser indispensável ao progresso da ciência médica para o bem da humanidade.”12
Como vemos o pensamento ético também muda com a ciência.

6.3. A ética na autoria da pesquisa

Historicamente os maiores debates científicos não foram pelos resultados e nem pelo objeto das pesquisas, mas sim pela sua autoria. Algumas vezes a disputa pela autoria nem chega a existir formalmente. Mas a história faz o seu julgamento.
Caso típico é o da pesquisa da Penicilina, primeiro antibiótico de largo espectro, (que podia curar a sífilis dos soldados negros americanos) foi iniciada por Alexander Fleming que só a viu como antisséptico para limpara placas de cultura de vírus. O seu colega Howard Florey foi que acreditou e pesquisou suas aplicações clínicas. Os dois dividiram o Prêmio Nobel de Medicina de 1945 pela descoberta, mas só Fleming soube usar da divulgação para passar à História como “Descobridor da Penicilina”. Os americanos patentearam o processo de fabricação da Penicilina e acabaram ficando com o dinheiro. A Florey restaram as glórias acadêmicas13.
Mas nem sempre a divulgação encerra o caso. Goulias14 conta a história da descoberta do vírus HIV. Os cientistas Luc Montagnier (do Instituto Pasteur, de Paris) e Robert Gallo (do Instituto Nacional do Câncer, dos EUA), costumavam trocar informações das suas pesquisas sobre a Aids. Em 1991, Montagnier enviou amostras do vírus que ele estava estudando para Gallo analisar. Em maio de 1993, Montagnier divulgou a sua descoberta como o vírus causador da Aids. Poucos dias depois Gallo fez o mesmo anúncio, o que levantaram suspeitas de se tratar do mesmo vírus. Após anos de disputa judicial ficou decidido que os dosis dividiriam os créditos (inclusive monetários) pela descoberta. Porém, depois de anos de investigações, a Justiça americana concluiu que Gallo teve uma conduta antiética por falsificar dados e enganar a comunidade científica, pois a amostra divulgada foi a do vírus isolado por Montagnier14.
Atualmente o Office of Research Integrity (ORI – Gabinete de Integridade na Pesquisa) se depara com muitas alegações de plágio por parte de ex-parceiros de pesquisa que seguiram os seus trabalhos independentemente. Mas como a propriedade intelectual não fica muito clara nesses casos e a colaboração entre pares pressupõe o consentimento para o uso dos resultados por todos os envolvidos, o ORI encara a disputa como uma disputa por autoria ou créditos e não casos de plágio15.

6.4. A ética em relação à época da pesquisa

A época em que a pesquisa foi feita deve ser levada em conta quando avaliamos a ética de uma pesquisa científica. O que hoje é considerado antiético pode não ter sido assim no passado e voltar a sê-lo no futuro.
Por exemplo: a ideia do Teorema de Pitágoras hoje é atribuída a Pitágoras de Samos, mas não há nenhuma certeza de sua participação na elaboração do teorema, pois “Não se costuma falar em descobertas de Pitágoras, mas sim dos pitagóricos, pois a sociedade por ele fundada, além de secreta tinha por norma que o conhecimento era comunitário, não sendo atribuído a um autor apenas.”16. Já nos dias de hoje o reconhecimento da autoria, coautoria ou participação é considerado fundamental, como vimos anteriormente.

6.5. A ética em relação ao local de execução da pesquisa

Quanto ao local onde é feita a pesquisa, ou pelo menos onde ela é testada, muitas vezes é determinado pela aceitação legal ou moral para aquele tipo de pesquisa. Isso é comum na indústria farmacêutica, como o caso dos testes do antibiótico “trovafloxacim”, que serve para combater a meningite e estava sendo testado em crianças da Nigéria. Não sendo usado em crianças inglesas ou norte-americanas que moram junto às sedes da empresa17.

6.6. A ética do método utilizado para a pesquisa

A falta do uso do método científico, por si só, não constitui atitude antiética. Talvez, no máximo, falta de espírito científico. Mas, quando a ausência do método tem como objetivo a ocultação dos argumentos contrários à teoria, isso sim é antiético.
Na década de 1970 fez muito sucesso o livro “Eram os deuses astronautas?” de Erich Von Daniken, que diz (e tenta argumentar em todo o seu livro): “[...] eu afirmo que nossos antepassados receberam visitas do espaço sideral na mais recuada antiguidade [...] e produziram um novo – senão o primeiro – Homo Sapiens.”18.
Não teria sido tão espantoso se alguma metodologia científica tivesse sido usa para apoiar a argumentação. Segundo Tanaka19, Daniken e outros escritores “passaram o tempo todo em seus livros tentando justificar seus pontos de vista, e não se lembram de verificar os indícios contrários.”.
E Tanaka19 continua: 
“O escritor suíço não poderia saber dos padrões de similaridade e dissimilaridade genética entre nós e outros primatas mostrando que não há nenhum material muito discrepante a que seja necessário aventar uma origem extraterrestre, mas uma análise dos padrões de evolução dos hominídeos dados pela análise dos fósseis não permitiria concluir por nossa origem espacial.”.
Carrorll20 vai mais longe. Afirma que Von Daniken forjou algumas de suas provas. E este, quando questionado sobre o assunto, justificou que o recurso era válido, pois algumas pessoas só acreditam mediante provas.

6.7. A ética relativa à origem do dinheiro para a pesquisa

Toda a pesquisa deve ser financiada por alguém. Esse pode dar o dinheiro apenas pelo prazer de ver o seu nome envolvido no progresso da ciência. Porém alguns “patrocinadores” tem por objetivo garantir que seus interesses sejam preservados não importando se os resultados da pesquisa são sérios ou não.
Nesse sentido, Cavalcante17 cita uma reportagem do Journal of The American Medical Association (Jama) concluiu que os resultados das pesquisas sobre os efeitos do cigarro em fumantes passivos, empreendidas por cientistas ligados à indústria do tabaco, mostram que os efeitos do fumo são pequenos, contrariando os resultados das pesquisas dos cientistas independentes.

6.8. A ética quanto à divulgação da pesquisa

A divulgação da pesquisa é essencial para que outros cientistas possam utilizar os resultados para reavaliar os seus e para que possam surgir novas ideias. Porém o medo de que essas ideias possam servir para uso indevido está conturbando o meio científico. Nesse sentido Bório21 afirma que deve haver uma discussão ética a respeito do que deve ser publicado, para que se evite que o conhecimento científico com potencial prejudicial à saúde da população possa cair em mãos erradas. Sem que se recorra à censura prévia por órgãos oficiais.
Outras vezes ocorre o contrário, a ânsia pela divulgação dos trabalhos, ainda não comprovados, é o que causa danos. Lisa Schwartz22, cientista americana, pesquisou 147 investigações científicas em cinco grandes encontros da área médica em 1998. Desses, pelo menos um quarto, gerou notícias de primeira página. Só que, em muitos casos, foram publicados sem que os jornalistas tivessem conhecimento das limitações dos estudos, gerando no público leigo falsas expectativas. O resultado é que, após três anos, somente metade dessas pesquisas foram publicadas nos principais jornais médicos, e um quarto delas simplesmente caíram no esquecimento.

6.9. Aética quanto à imparcialidade da pesquisa

A imparcialidade na opinião dada pelo pesquisador a respeito do trabalho de outros frequentemente fica comprometida pelo envolvimento de interesses pessoais.
Hoje sabe-se que “nos Estados Unidos estima-se que cerca da metade dos pesquisadores prestam consultoria à indústria (farmacêutica) e cerca de 8% têm ações em empresas biomédicas”17. Obviamente a posição desses pesquisadores deve ser encarada com desconfiança.

6.10. A ética do uso do resultado das pesquisas de terceiros

A famosa disputa entre Newton e Leibniz pela autoria da teoria do cálculo infinitesimal, na verdade poderia ser entendida como um conflito ético sobre a utilização dos resultados das pesquisas de outros.
Newton x Leibniz

Leibniz havia recentemente recebido uma carta de Newton que falava de alguns de seus resultados mas não os métodos usados por Newton. Dessa forma Leibniz percebeu que devia publicar os seus métodos, desenvolvidos em paralelo com resultados semelhantes. Assim começaram as acusações de Newton sobre o plágio de Leibniz ao seu trabalho23.
Mas a disputa sobre o uso das ideias para o desenvolvimento de novas pesquisas não ficou só no passado. Pois outra reportagem do Journal of The American Medical Association (Jama) mostrou que 47% dos geneticistas que pediram informações a colegas receberam um “não” como resposta. Pois muitas vezes o potencial financeiro da pesquisa faz com que eles não queiram dividir suas informações17.

7. Considerações finais

Como vimos, o comportamento ético na ciência tem limites tênues, como um reflexo do comportamento humano. Porém, pelo grande impacto que a pesquisa científica tem sobre o destino da humanidade, deve-se buscar limites para esse comportamento. O Prof. Santos6 sugere as bases de um regulamento ético, dividido em três partes:
“a) A lei deve ter uma aplicação geral, do presidente ao motorista; b) A elaboração da lei deve se fundamentar na mais ampla consulta; c) A formulação da lei deve ter em mira o mais longo horizonte de tempo possível”.
Como as mudanças da ciência e da sociedade não param de ocorrer cabe à própria sociedade se manter alerta para que não fique ultrapassada e nem seja suprimida. A ciência serve à sociedade e cabe à sociedade colocar os limites éticos para a ciência.

Referências Bibliográficas:

Obs.: como o trabalho tem mais de 10 anos e várias das referências são da internet, muitas páginas não existem mais. Procurei encontrar referências em páginas muito similares.


FONTES auxiliares:



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